Livro: "Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade", de Judith Butler


Eu sei que não é um livro novo, mas essa é uma leitura que considero válida a qualquer tempo! A versão mais atual no Brasil foi lançada em 2015 pela editora Civilização Brasileira, mantendo a tradução já consagrada de Renato Aguiar.

Não pretendo entrar nas complexidades do pensamento de Butler, ok?! Farei apenas uma tentativa de explicar, da forma mais didática possível, o que torna esse livro tão importante e ao mesmo tempo tão polêmico, principalmente para as pessoas que não estão dentro da academia e não têm a oportunidade de assistir a aulas em universidades sobre o tema. Se você está na universidade, leu o livro e não entendeu nada, esse texto também pode servir.

Problemas de gênero foi originalmente escrito por Butler em 1989, num momento bastante prolífico dentro da teoria feminista, em que a chamada "segunda onda" dava lugar às críticas e buscas por análises interseccionais do sujeito "mulher". E é aqui que a filósofa em questão entra, com uma obra que não apenas questiona a ideia de um gênero feminino universal, mas desconstrói a própria ideia de gênero, tão cara ao feminismo.

Infelizmente, por ser uma leitura tão densa e com uma linguagem não necessariamente fácil de se compreender (apesar de bem objetiva e direta), os equívocos de interpretação se mantém até hoje, quase 20 anos depois de o livro ter sido escrito (bem como as distorções voluntárias, a exemplo da cruzada contra uma "ideologia de gênero" pelos conservadores).

A proposta de Butler é fundamentada pela noção de que o gênero é performativo, conceito derivado da "Teoria dos atos de fala", do linguista J. L. Austin. Um grande problema do termo em si é que muitas pessoas confundem performativo com performático e atribuir este último como característica do gênero é diferente daquilo que a autora coloca. 

Primeiro, o aspecto linguístico: um ato performativo de fala é aquele que cria uma realidade, que realiza uma ação, quando proferido. Para que isso aconteça, ele deve partir de um indivíduo a quem foi atribuída autoridade para, numa determinada situação, realizar um ato com essa fala. Pode parecer difícil de entender, mas um bom exemplo é o do casamento católico. Veja bem, não existe uma substância "casamento", o que existe são duas pessoas que pretendem que seu relacionamento se transforme em casamento, certo? Para que seu casamento passe a ser realidade, elas precisam de um sujeito com autoridade (o padre) que faça uma declaração performativa em uma situação específica (a cerimônia na igreja). Assim, quando o padre, durante o ritual da cerimônia, diz "Eu os declaro marido e mulher", ele cria a realidade do casamento.

Agora, falemos de Butler: o gênero ser performativo significa que ele é criado, como realidade, por uma série de práticas das pessoas em sociedade. Grosso modo, a autora propõe que não existe uma substância "gênero", mas um conjunto de ações, falas, comportamentos etc. que criam "homem" e "mulher". Prova disso é que os significados de "ser mulher" e "ser homem" podem variar muito de uma cultura para outra e, mais, que uma cultura pode criar um terceiro, quarto ou quinto gênero a partir do mesmo processo (como é o caso dos sujeitos two spirit em comunidades nativas norte-americanas).

Ao contrário do que conservadores têm alardeado, a noção de performatividade de gênero não nega a biologia. O que ela faz é chamar a atenção para os sentidos linguísticos, simbólicos e imagéticos que são construídos e impostos ao corpo de cada um de nós com base em nossa configuração biológica. Uma das intenções de Judith Butler é nos fazer questionar "o que é ser mulher?" e perceber que a maior parte daquilo que a sociedade nos faz acreditar que seja uma "essência feminina" é, na verdade, uma construção feita cuidadosamente e repetida a todo tempo, a fim de que isso se introjete em nossa identidade e pareça ser parte dela desde sempre.

Além disso, existe uma lógica que associa sexo a gênero, a desejo e a sexualidade, de forma que só possa haver um caminho para cada indivíduo. Dessa forma, se você nasceu com uma configuração biológica de "fêmea" (sexo), você só poderá ser uma mulher (gênero) e sua única possibilidade será a de se sentir atraída por homens (desejo), identificando-se como heterossexual (sexualidade).

E qual a importância disso? Bom, se você é uma garota que sofreu bullying a vida toda só porque gosta de roupas largas ou de jogar futebol, é importante que você tenha consciência de que isso não representa problema algum, nem que seu gênero é definido por essas preferências. 

Um caso recente foi o do adolescente Junior Silva, de 12 anos, que teve seu perfil no Facebook cancelado. O garoto faz vídeos para ensinar crochê em um canal no YouTube e, por ser menor de 13 anos, teve sua página de divulgação na rede social apagada. Nos comentários da notícia sobre o ocorrido o que se viu foi um grande número de pessoas apontando o quanto o fato de o garoto gostar de fazer crochê não era "coisa de menino". Isso mostra o quanto a sociedade se empenha para reiterar essa performatividade de gênero como uma realidade inquestionável, provocando e ridicularizando aqueles que têm escolhas aparentemente não condizentes com o gênero que lhe é designado.


Um menino gostar de crochê não fará diferença alguma no desenvolvimento de sua identidade de gênero, nem de sua sexualidade, qualquer que ela seja, mas porque existe uma associação cultural construída que determina quais são as atividades "de meninos", seu gosto representa uma quebra nessa "ligação coerente".

A noção do gênero ser performativo levanta ainda a possibilidade de se subverter essas regras impostas a fim de se estabelecer a "coerência do gênero". Justamente por não haver nada na biologia que justifique a expressão e os papéis sociais do gênero, podemos escolher novas formas de nos expressar que evidenciem essa artificialidade. Dessa forma, citando Butler, é preciso entender que "gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais nem derivados. Como portadores críveis desses atributos, contudo, eles também podem se tornar completa e radicalmente incríveis" (2015, p. 244). 

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