Tradução: "The Coronavirus-Denial Movement Now Has a Leader", artigo de The Atlantic

O movimento negacionista do coronavírus agora tem um novo líder
[Matéria publicada em março de 2020 no periódico The Atlantic.]

Por Uri Friedman

27 de mar. 2020


Foto: ANDRESSA ANHOLETE / GETTY / KATIE MARTIN / THE ATLANTIC



Ele descreveu a doença como uma "gripezinha", um "resfriado" insignificante. Ele acusou a mídia de fabricar "histeria" – mesmo com casos confirmados do coronavírus, que causa a doença COVID-19, aumentando para bem mais de meio milhão e com cerca de 25 mil mortes ao redor do mundo. O movimento negacionista do coronavírus oficialmente tem um líder, e é o presidente brasileiro Jair Bolsonaro.

Apelidado de "Trump dos Trópicos", Bolsonaro tem buscado emular o nacionalismo populista de direita do presidente americano desde o lançamento de sua campanha para a presidência em 2018. Mas comparada com a posição de Bolsonaro sobre a pandemia de coronavírus, a abordagem de Donald Trump parece sóbria e cientificamente embasada.
Se há uma lição vinda das respostas globais à COVID-19, é esta: Os países que tiveram maior sucesso "achatando a curva" agiram rapidamente e agressivamente para conter o vírus, em vez de subestimar a ameaça que ele representa. Bolsonaro teve meses para absorver essa lição, mas escolheu adotar a conduta oposta.


Bolsonaro, que comanda um dos países mais populosos e economicamente dinâmicos do mundo, descreveu a COVID-19 como um incômodo sem sintomas para "90 por cento" dos brasileiros infectados. Ele argumentou que, apesar de ter 65 [anos], ele não corre riscos sérios mesmo se for infectado, por causa de seu "histórico de atleta". (Os atletas que contraíram a COVID-19 podem se surpreender ao descobrir que seus talentos lhes garantem poderes especiais contra o vírus.) 

Ele propôs isolar apenas os idosos e aqueles com condições de saúde prévias. Ontem mesmo (26 de março), Bolsonaro assegurou que brasileiros "nunca pegam nada", mesmo quando mergulham no "esgoto", e que eles podem já ter desenvolvido "anticorpos" para interromper o alastramento do vírus.

Ele tem, além disso, criticado bloqueios/quarentenas; fechamento de negócios, escolas e transporte público; tudo aquilo que se distancia da normalidade. Ele tem atacado governadores e prefeitos que implementaram essas políticas, alegando que estão cometendo crimes e "destruindo o Brasil", e ativamente procurou bloquear algumas dessas medidas.
A postura de Bolsonaro encorajou alguns de seus conselheiros e apoiadores proeminentes a se engajarem no mesmo negacionismo, mas também o deixou isolado e sitiado. Governantes locais, juntamente com muitos batedores de panela, protestantes que se colocaram em quarentena, o condenaram por não apoiar ações de emergência. Um ex-apoiador, o governador do Rio de Janeiro, acabou de ganhar uma batalha judicial contra Bolsonaro que o permitirá dar continuidade ao fechamento dos aeroportos e das estadas interestaduais. O governador de São Paulo, outro ex-aliado, ameaçou processar o governo federal se este obstruir seus esforços para conter o vírus.
Bolsonaro tem feito tudo isso mesmo com funcionários de primeiro escalão em torno dele, incluindo ministros de gabinete, ficando doentes pela COVID-19. Na noite de 7 de março, em uma cena que agora parece vinda de uma era passada, Trump se encontrou com Bolsonaro no resort Mar-a-Lago, calorosamente apertou sua mão, e dispensou uma pergunta feita por um repórter sobre se ele estaria preocupado com o vírus estar "chegando mais perto da Casa Branca". Nas três semanas seguintes, mais de 20 membros da delegação de Bolsonaro que foi aos EUA testou positivo para o coronavírus. (Bolsonaro e Trump disseram que haviam testado negativo.) Bolsonaro ignorou o conselho de seu próprio Ministério da Saúde para se isolar por duas semanas e desencorajar aglomerações. Ele fez uma demonstração desafiadora de apertos de mãos e tirando selfies em uma manifestação que atraiu centenas de seus apoiadores.
"Nós podemos estar sentados em uma bomba relógio aqui", especialmente para os cidadãos mais vulneráveis do país, Paulo Sotero, um especialista em Brasil no Wilson Center, me disse. "É impressionante que [Bolsonaro esteja mantendo] essa atitude ignorante diante de uma emergência em saúde pública... É loucura o que esse homem está fazendo." O presidente "é um atirador de bombas" por natureza, argumenta Sotero, num momento em que aquilo que a nação precisa agora é de um anti-bombas.
De fato, enquanto o Brasil tem aproximadamente 3 mil casos confirmados de coronavírus e 77 mortes, bem menos do que os países mais atingidos pelo vírus no momento, ele tem o maior número de casos na América Latina, e seu crescimento de casos tem uma trajetória preocupante. O ministro da Saúde de Bolsonaro, em quem o presidente parece estar jogando um balde de água fria sobre suas deliberações, avisou, na última semana, que sistema de saúde do país "vai entrar em colapso" no fim de abril pela onde de pacientes com COVID-19. 
Sotero aponta que o Brasil celebrou seu famoso Carnaval há apenas um mês, um fato preocupante, dado que um grande surto de coronavírus em Nova Orleans está ligado às festividades do Mardi Gras. Ele destaca que muitos dos pobres no Brasil não tem nem mesmo acesso a água corrente tratada para lavar suas mãos. Esse problema pode se tornar particularmente agudo em áreas rurais e nas densas comunidades urbanas conhecidas como favelas, onde casos de coronavírus já foram reportados.
"Se em Nova York, a mais importante e rica cidade do mundo, estão enfrentando a calamidade da qual estão diante agora, você pode imaginar aquilo que pode acontecer em países bem mais vulneráveis e suas grandes cidades, como São Paulo, como Rio", diz Sotero.  "Nós temos muitos médicos talentosos no Brasil, mas não temos um NIH [National Institutes of Health] com um Doutor Fauci revidando na televisão."
"Bolsonaro está genuinamente preocupado com o impacto que uma longa quarentena poderia ter na economia, especialmente em um país como o Brasil, onde tantas pessoas mal sobrevivem na base do dia a dia", Brian Winter, editor-chefe da Americas Quarterly, me disse em um e-mail. "Vendedores de rua não podem trabalhar de casa." Esse é um equilíbrio difícil de se obter para qualquer político, aponta Winter. Cerca de um quarto da população do país, de mais de 200 milhões, vive na pobreza. "Nós sabemos que recessões profundas também podem matar pessoas", ele escreve.
Como Bolsonaro colocou, "se nos acovardarmos, optar pelo discurso fácil, todos ficam em casa, será um caos. Ninguém vai produzir nada, haverá desemprego, geladeiras ficarão vazias, ninguém conseguirá pagar suas contas." Bolsonaro pode também estar procurando se distanciar das rígidas medidas de distanciamento social que seu governo terá de adotar, a fim de escapar da culpa pelo estrago significante que elas irão causar na economia já problemática do Brasil.
Mas Winter adiciona que as motivações de Bolsonaro provavelmente também são ideológicas, e em função de seu populismo: "uma recusa de levar a ciência a sério, de desprezar tudo aquilo que 'a mídia' disser como uma conspiração elitista hostil, de rejeitar o establishment em geral." Populistas tendem a apostar que podem "criar sua própria realidade", mas "Bolsonaro simplesmente não vai parar um vírus insistindo, no Facebook, que seu pior inimigo é uma 'gripezinha'."
Trump se recusou a criticar Bolsonaro por seu ceticismo sobre o coronavírus, mas não chegou nem perto do ponto ao qual seu aliado brasileiro foi. Na verdade, Bolsonaro tem sido mais extremo em seu negacionismo do que qualquer outro líder no mundo. Até mesmo o primeiro ministro indiano Narendra Modi, outro populista-nacionalista de direita, ordenou o maior lockdown na história humana.
Por ora, Trump parece dividido entre a orientação de conselheiros buscando evitar uma catástrofe na saúde pública e seus próprios instintos de passar por cima dos especialistas a fim de reviver a economia, cuja performance é central para sua reeleição. "A Mídia Lamentosa é a força dominante na tentativa de me fazer manter nosso País fechado pelo maior tempo possível na esperança de que isso será em detrimento do meu sucesso nas eleições", o presidente tweetou esta semana. "O povo real quer voltar ao trabalho assim que possível."
A forma de Bolsonaro de lidar com o surto ilustra como os Estados Unidos poderiam ficar se Trump tivesse ido a fundo em seu argumento de que a cura é pior do que a doença.
"Eu pessoalmente espero que Trump e Bolsonaro possam se colocar em um palco daqui a dois meses e fazer uma grande manifestação dizendo Make Brazil Gread Again na qual provocam opositores e medrosos por exagerarem as proporções do vírus", Winter me disse. "Porque isso vai significar que todos nós passamos por isso sem dezenas ou centenas de milhares de mortes. Mas, infelizmente, eu tenho minhas dúvidas."

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