Tradução: "Deathwatch for the Amazon", artigo da revista The Economist


Velório/vigília para a Amazônia

[Nota introdutória: a expressão "deathwatch" se refere ao ato de velar alguém que esteja em seu leito de morte ou que já tenha, de fato, morrido, motivo pelo qual sugeri duas palavras para a versão em português do título "Deathwatch for the Amazon". Este é o artigo principal publicado no dia 1º de agosto de 2019 pela revista The Economist e disponível em seu site. Ao longo do texto, observações que eu julgar necessárias aparecerão entre colchetes, como no caso desta nota.]


APESAR DE seu berço ser a savana de arborização escassa, a humanidade tem há muito procurado por florestas para conseguir alimento, combustível, madeira e inspiração sublime. Ainda uma forma de subsistência para 1,5 bilhão de pessoas, as florestas mantêm ecossistemas locais e regionais e, para os outros 6,2 bilhões, provem um amortecimento — fragilizado e rangendo — contra a mudança climática. Agora secas, incêndios florestais e outras mudanças induzidas por ação humana estão compondo o dano que vem das serras elétricas. Nos trópicos, que contêm metade da biomassa de floresta do mundo, a perda de coberturas de árvores se acelerou em dois terços desde 2015; se fossem um país, o encolhimento faria da floresta tropical a terceira maior emissora de dióxido de carbono do mundo, depois da China e da América.
Em nenhum outro lugar as apostas são mais altas do que na bacia do Amazonas — e não apenas porque ela contém 40% das florestas tropicais da Terra e abriga 10-15% das espécies terrestres do mundo. A maravilha natural da América do Sul pode estar perigosamente perto do ponto de inflexão em que sua transformação gradual em algo próximo a uma estepe não possa ser interrompido ou revertido, mesmo que as pessoas abaixem seus machados. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, está acelerando o processo — em nome, ele alega, do desenvolvimento. O colapso ecológico que suas políticas podem precipitar seria percebido de forma mais aguda nas fronteiras do país, que encerram 80% da bacia — mas esse colapso também iria bem mais além. Ele precisa ser evitado.
Os humanos têm desbastado a floresta amazônica desde quando se estabeleceram ali há mais de dez milênios. Desde os anos 1970 eles o têm feito em uma escala industrial. Nos últimos 50 anos, o Brasil renunciou a 17% da extensão original da floresta, mais do que a área da França, para construção de estradas e barragens, exploração madeireira, mineração, cultivo de soja e pecuária. Depois de um esforço governamental por sete anos para desacelerar a destruição, ela foi retomada em 2013 devido ao enfraquecimento da fiscalização e a uma anistia a desmatamentos no passado.  A recessão e a crise política podaram ainda mais a habilidade do governo de fazer cumprir as regras. Agora o senhor Bolsonaro levou alegremente uma serra para ele. Embora o congresso e as cortes tenham bloqueado alguns de seus esforços para despir partes da Amazônia de seus status de protegidas, ele deixou claro que infratores não têm nada a temer, apesar do fato de ele ter sido eleito para restaurar a lei e a ordem. Porque 70-80% da exploração madeireira na Amazônia é ilegal, a destruição subiu a níveis recordes. Desde que assumiu o gabinete em janeiro, árvores têm desaparecido em uma escala de mais de duas Manhattans por semana.
A Amazônia é incomum na medida em que recicla a maior parte de sua própria água. Conforme a floresta míngua, menos reciclagem ocorre. Até um certo limite, isso faz com que a floresta murche ainda mais de forma que, em uma questão de décadas, o processo alimente a si mesmo. A mudança climática está tornando o limite mais próximo a cada ano, conforme a floresta se aquece. O senhor Bolsonaro está impelindo isso até o fim. Pessimistas temem que o ciclo de degradação descontrolada possa fazer efeito quando outros 3-8% da floresta desaparecer — o que, sob [a gestão de] o senhor Bolsonaro, pode acontecer em breve. Há indícios de que os pessimistas possam estar corretos. [Em outra matéria, publicada na mesma edição, há um dossiê em que a revista apresenta os dados da devastação amazônica; clique aqui para ler a matéria em inglês]. Nos últimos 15 anos a Amazônia sofreu três secas severas. Incêndios estão aumentando.
O presidente do Brasil dispensa essas descobertas, como ele faz mais amplamente com a ciência. Ele acusa pessoas de fora de hipocrisia — os países mais ricos não acabaram com suas próprias florestas? — e, às vezes, de usar o dogma ambiental como um pretexto para manter o Brasil pobre. "A Amazônia é nossa", o presidente vociferou recentemente. O que acontece na Amazônia brasileira, ele pensa, é problema do Brasil.
Exceto que não é. Um "dieback" ["perecimento"; aparentemente, o termo é usado em inglês no meio acadêmico brasileiro] machucaria diretamente os sete outros países com os quais o Brasil divide a bacia do rio. Isso reduziria a umidade canalizada ao longo dos Andes até o sul, em Buenos Aires. Se o Brasil estivesse represando um rio real, e não sufocando um rio aéreo, nações localizadas ao longo de seu fluxo poderiam considerar esse um ato de guerra. Conforme a vasta reserva amazônica de carbono queima e se deteriora, o mundo pode se aquecer 0,1ºC até 2100 — não é muito, você pode pensar, mas o objetivo preferido pelo acordo de Paris permite um aquecimento de apenas 0,5ºC aproximadamente. 
Os outros argumentos do senhor Bolsonaro também são falhos. Sim, o mundo rico destruiu suas florestas. O Brasil não deveria copiar seus erros, mas aprender com eles como, digamos, a França aprendeu, reflorestando enquanto ainda pode. A paranoia a respeito de intrigas do Ocidente é exatamente isso [uma paranoia]. A economia do conhecimento valoriza a informação genética isolada na floresta muito mais do que terra ou árvores mortas. Mesmo que não o fizesse, o desflorestamento não é um preço necessário para o desenvolvimento. A produção do Brasil de soja e carne aumentou entre 2004 e 2012, quando o desmatamento de florestas desacelerou em 80%. Na verdade, à parte da Amazônia propriamente dita, a agricultura brasileira pode ser a maior vítima do desflorestamento. A seca de 2015 fez com que agricultores de milho no estado central brasileiro do Mato Grosso perdessem um terço de sua colheita.
Por todos esses motivos, o mundo deve deixar claro para o senhor Bolsonaro que não irá tolerar seu vandalismo. Companhias alimentícias, pressionadas por consumidores, deveriam rejeitar soja e carne produzidas ilegalmente em terra amazônica derrubada, como fizeram em meados dos anos 2000. Os parceiros comerciais do Brasil deveriam fazer negócios atrelados a seu bom comportamento. O acordo acertado em junho entre a União Europeia e o Mercosul, um bloco econômico-comercial sul-americano do qual o Brasil é o maior membro, já inclui provisões para proteger a floresta tropical. É inegavelmente do interesse das partes reforçar essas provisões. O mesmo vale para a China, que está ansiosa quanto ao aquecimento global e precisa da agricultura brasileira para aumentar sua pecuária. Signatários ricos do acordo de Paris, que se comprometeram a pagar países em desenvolvimento para plantar árvores consumidoras de carbono, devem fazê-lo. O desflorestamento é responsável por 8% da emissão global de gases de efeito estufa, mas atrai apenas 3% do auxílio reservado para combater a mudança climática.

A madeira e as árvores



Se há algo a brotar da tática de terra arrasada do senhor Bolsonaro em direção à floresta tropical, é que isso tornou a condição da Amazônia mais difícil de ignorar — e não apenas para quem está de fora. A ministra da Agricultura do Brasil insistiu ao senhor Bolsonaro para que permanecesse no acordo de Paris. O desflorestamento descontrolado pode terminar afetando negativamente os fazendeiros brasileiros na medida em que leva a boicotes estrangeiros de bens agrícolas brasileiros. Cidadãos brasileiros devem pressionar seu presidente a reverter seu curso. Eles foram abençoados com um patrimônio único no planeta, cujo valor é intrínseco e sustentador da vida tanto quanto é comercial. Deixar que pereça seria uma catástrofe desnecessária.

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